domingo, 1 de janeiro de 2012

Mr. president (2003)

George,

Não tenho dúvidas de que você seja um homem obstinado. Ironicamente, sua obstinação conduz à concretização pelos próprios americanos da ameaça dirigida a vocês pelo inimigo dito ensandecido, que não chegou a consumá-la: “Se os EUA usarem ataques aéreos contra nós, o que aconteceu no 11 de Setembro parecerá um piquenique”. Pois com a mesma perplexidade que testemunhou os atentados em NY, o mundo assistiu aos ataques sobre Bagdá, com a promessa do Pentágono de que o pior ainda está por vir.

Você tem consciência de que essas ameaças só acirram os sentimentos que levaram tanta violência à sua porta? Do risco de fazer com que mais civis americanos, nenhum tão protegido quanto você, se tornem alvo de novos ataques em todo o mundo? Compreendo que dificilmente outro tipo de ação atrairia a atenção das câmeras e holofotes para sua pessoa. Principalmente depois do caos de 11 de setembro. Talvez você ainda nos arraste à próxima Guerra Mundial. Muito bem. Mas quando você afirma que esse derramamento de sangue é o caminho para a “paz mundial” acredita mesmo em suas próprias palavras? Em nosso país, os jovens não entendem como o sr. estaria “fortalecendo a autoridade das Nações Unidas” desobedecendo-as, como estaria lutando pelo futuro dos iraquianos despejando toneladas de bombas sobre suas cabeças e insiste em citar a Bíblia e usar o nome de Deus mesmo depois que o próprio Papa mandou você calar a boca.

Como você concilia essa matança feita em seu nome e sua decisão de ter aceitado Cristo em sua vida (“Minha fé me ensinou que a vida é um presente de nosso Criador”)? Nossa juventude não viu a lógica de sua fé na alternância de massacres e ajuda humanitária e não entende como, depois que o mundo todo se mobilizou e se uniu a favor da América contra os atos terroristas, você conseguiu a façanha de converter essa solidariedade em repulsa e a união em dissidência. Quem é o seu deus? Eu não sou jovem, mas só hoje, ao vê-lo aplicado por você, compreendo plenamente o terrível significado do slogan totalitarista transcrito por Orwell no clássico 1984:

“Guerra é paz.
Escravidão é liberdade.
Ignorância é força.”


É hilário saber pela imprensa (que tardiamente tornou-se antibelicista: quando o desastre era iminente fez da contagem regressiva um evento pirotécnico e só protestou quando a invasão já estava consumada e repórteres morriam acima da média) que Saddam construiu um regime “baseado no terror e nos laços de sangue”. “Quando ele eliminava um potencial rival, freqüentemente cuidava para que sua família inteira fosse morta também, a fim de evitar o perigo dos parentes vingativos”, disse o repórter, palavras com as quais você concorda ou que seu gabinete simplesmente ditou para ele. E o que fez você para vingar-se do homem agora responsabilizado pelo ato de outro? Não castigou não apenas os parentes do líder iraquiano, mas toda a população das metrópoles onde morava? O que terá acontecido com seu serviço de inteligência, presidente, cuja eficiência é tão decantada pela mídia e Hollywood, mas cujos agentes foram incapazes de destituir um homem dito odiado pelos próprios súditos que o cercavam?

Como os EUA pretendem seguir os movimentos de Saddam em seu deslocamento pelo mundo se nem sequer encontraram as gigantescas fábricas de armas químicas fixadas em solo iraquiano, se seus agentes sequer conseguem rastrear a origem das fitas que chegam à Al Jazeera regularmente, bem debaixo de seu nariz? Sua ambição já o conduz ao encalço de outros déspotas. Talvez circunstâncias especiais o façam esquecer-se deles em breve, como esqueceu-se de Bin Laden, cuja captura você dizia ser seu único objetivo quando uma fuga do Afeganistão parecia impossível.

Lembra-se de sua pressa em invadir o Iraque antes de os inspetores terminarem o trabalho? Você até hoje não explicou qual ameaça imediata Saddam representava que impediria a espera de mais 1 mês por um relatório conclusivo. O próprio desfecho da crise provou que Saddam não estava preparado para agir. Daqui, a impressão que tivemos é que você temia que os inspetores acabassem por concluir que as únicas fábricas de armas químicas são as que os ingleses construíram duas décadas atrás. Depois do país destruído, seria fácil dizer que as provas foram igualmente pelos ares.

Sua teoria é de que o povo iraquiano era refém de um fora-da-lei. Mas a regra não é nunca pôr em perigo vidas inocentes? Por que não foi adotada no Iraque? Então, por que essa sua nova e eficaz política não é usada para acabar com os seqüestros dentro dos EUA?

Assim, bastaria aos cops ou à ATF dinamitar os seqüestradores junto com os reféns, deixando a equipe de limpeza e os bombeiros terminarem o trabalho dos esquadrões de elite. Que tal usar seus mísseis para acabar com os chefões do crime organizado e do tráfico de drogas em Nova York? Por que então não liquidar logo os líderes cubanos, chineses ou somalis, que notoriamente desrespeitam os direitos humanos que você tanto preza? Talvez por Cuba estar demasiado próxima de você, a China não estar tão enfraquecida e possuir armas de verdade, e os únicos espólios da Somália serem conflitos étnicos, fome e miséria.

A exposição de prisioneiros de guerra americanos pelo Iraque trouxe à baila a Convenção de Genebra, que você evoca sempre que seus homens são capturados, nunca quando eles capturam inimigos. Mas se os Estados Unidos são a favor da legalidade e isonomia internacionais, por que você votou contra a criação do Tribunal Internacional, que, depois de criado, foi pressionado a dar imunidade aos americanos? Nenhum código ou convenção militar trata da imoralidade em ordenar soldados a matar-se uns aos outros por capricho de seus líderes, mas o de Genebra parece deter-se na exposição pública de prisioneiros de guerra. Quer dizer, segundo a ética internacional é proibido exibir soldados capturados; matá-los em ação pode. Ao tentar atingir o líder iraquiano, vocês mataram e aleijaram crianças e mulheres (“efeito colateral”). Por serem juízes do mundo, vocês nunca serão punidos. E afinal, Saddam é um “alvo legítimo”. Agora, como vocês pretendem julgar seus franco atiradores (aqueles que invadem escolas e restaurantes e saem atirando em todo mundo) se esses loucos alegarem que tinham “informações confiáveis” de que Saddam se escondia nalgum desses prédios? Afinal, a morte de civis não é apenas efeito colateral e os 200 mil dólares por uma cabeça não legitima a caçada humana?

O que difere os seus ataques a centros superpovoados e atos terroristas (“Terrorismo: forma de ação política que combate o poder estabelecido mediante o emprego da violência”)? De que adianta seus mísseis terem precisão cirúrgica se sua carga devasta o quarteirão inteiro? Você parece ser um homem inteligente e tem armas igualmente inteligentes, sem dúvida. Melhor seria se também pudessem ser dotadas de sabedoria, mas mesmo você parece destituído disso. Você quer libertar o resto do mundo. É um idealista! Já perguntou se esse resto de mundo aprova seu método de libertação, que é jogando um milhão de mísseis sobre residências, asilos, creches, hospitais, templos e museus? Já lhe ocorreu que há quem possa preferir a ditadura doméstica à de Washington e seus aliados? Veja o caso dos afegãos. Livre do Talibã, hoje volta a sofrer nas mãos dos selvagens da Aliança do Norte, igual acontecia antes da chegada da Al Qaeda, talvez pior agora, com as represálias. “Escravidão é liberdade.”

Não duvido de que o Iraque produzisse e estocasse armas mortais para fins bélicos. Até porque deve ser material fornecido pelos próprios militares americanos e ingleses, dada a veemência de suas acusações. Um dos laboratórios fotografados pelo satélite espião mais tarde revelou-se ter sido patrocinado pelo governo Tatcher, e acho que não foi para ajudar nas pesquisas contra o câncer ou a Aids. Se de fato for levada adiante sua intenção de perseguir líderes assassinos espalhados pelo mundo, inevitavelmente os rastros de sangue levariam seus homens de volta à Casa Branca.

Todos concordamos que o Iraque teria de ter sido impedido de produzir tais armas. Mas por que vocês podem? É possível que a América esteja reivindicando direitos autorais sobre a destruição em larga escala, patentear o terror? Com que autoridade moral você exigiu que o Conselho de Segurança fiscalizasse o arsenal alheio se não permitiu a entrada de inspetores nas fábricas americanas? Por que o mundo estaria a salvo com a concentração e controle do poder atômico nas suas mãos? Assim como há fundamentalismo em todas as religiões, a insanidade não é característica exclusiva de muçulmanos, da qual os líderes ocidentais estariam imunes. Todos são farinha do mesmo saco, e se hoje o mundo vive ameaçado por ogivas nucleares e armas químicas e biológicas é porque os EUA as criaram.

In: Portal Comunique-se

___________________________________
Carta escrita na madrugada de 10 de abril de 2003, o dia seguinte ao da tomada do coração de Bagdá. A “open criticism” ― um desabafo contra a pusilanimidade, a hipocrisia, a prepotência e a barbárie ― foi gentilmente vertida para o inglês pelo professor e radialista Lívio Soares de Medeiros e remetida para president@whitehouse.gov, vice.president@whitehouse.gov, first.lady@whitehouse.gov e mrs.cheney@whitehouse.gov. Como Isaac Asimov, acredito que a única guerra que a humanidade deveria permitir é a "guerra contra a extinção".

Nenhum comentário:

Postar um comentário